Um tipo de conteúdo inédito no blog, dividido em duas partes!
Não conferiu a parte 2 da entrevista? Ela está neste link aqui!
A seguinte entrevista se deu no volume 34 da revista japonesa Febri, em abril de 2016, logo após o encerramento da primeira temporada de Shōwa Genroku Rakugo Shinjū. Sua tradução, diretamente do japonês, foi feita pelo ótimo blog Hot Chocolate (link); na minha tradução, do inglês, procurei atentar para expressões e atalhos da língua inglesa que poderiam confundir quem só domina o português. É claro, tenho também a intenção de “espalhar” conteúdo pouco visto por aí no nosso idioma, como esta e possíveis novas entrevistas. Traduzir também é um hobby interessante e um bom treinamento…
Abaixo, e este será meu último recado, temos mais uma conversa do que uma entrevista, pra ser franco. Akira Ishida e Megumi Hayashibara são veteranos da dublagem, e o entrosamento dos dois, vindo de inúmeros trabalhos juntos, não só transparece como também enriquece belamente a conversa abaixo. Nem preciso dizer que parte da relação entre os personagens Kikuhiko e Miyokichi está diretamente ligada à boa relação entre seus dubladores. Completando o trio, ainda que ausente nesta entrevista, o também veterano Kōichi Yamadera (Sukeroku) contribui com a química. Juntos, porém, os três estiveram somente em Evangelion, interpretando Rei Ayanami (Hayashibara), Kaworu Nagisa (Ishida) e Ryōji Kaji (Yamadera). Vinte anos depois de Eva, o trio se reencontrou para dar as vozes aos protagonistas de Rakugo. E que vozes! Espero que o leitor ache a entrevista interessante e, sem mais delongas, vamos à ela.
São estranhos os vínculos fatídicos… Não governados por lógica e razão, tais são os laços entre homens e mulheres. A relação entre Kikuhiko e Miyokichi também está cheia de questões incompreensíveis. Como os atores por trás desses personagens retrataram um relacionamento tão aflitivo? Nesta discussão, pedimos aos dois que compartilhem a profundidade de seus sentimentos em relação ao show e seus personagens.
Entrevista e texto: Hisashi Maeda
— Vocês dois atuaram juntos em vários animes diferentes, começando com Slayers em que interpretaram Lina e Xellos, e Neon Genesis Evangelion, em que foram Rei Ayanami e Kaworu Nagisa. Como vocês se sentiram quando descobriram que estariam juntos em Rakugo?
Ishida: Quando descobri que Hayashibara-san seria minha parceira, eu disse a mim mesmo “oh não, que parceira assustadora…” de várias maneiras.
Hayashibara: “O que é isso? Onde? E por quê?” …desse jeito, você quer dizer? (risos)
Ishida: Oh, não, não (risos). Como todos estão bem cientes, você é uma dubladora¹ incrível, certo? Alguém assim provavelmente é rigorosa consigo mesma, e também com aqueles que atuam ao lado dela. Pelo menos, é como imagino.
Hayashibara: “É como imagino”… você poderia garantir de publicar essa frase com letras grandes e em negrito? (risos)
Ishida: Sabe, caso eu tentasse fingir, com meu nível de habilidade, você veria através de mim. Você veria através de mim não importa o que eu fizesse, então eu pus-me em guarda desde o início.
Hayashibara: Como é que é?!
Ishida: É especialmente verdade para este anime, mas mesmo para os outros shows em que trabalhamos juntos, sempre pensei em você como alguém que deixa as pessoas com as quais você está atuando mais alertas, independentemente da atmosfera que o estúdio mostre na superfície.
Hayashibara: É mesmo?… que interessante!
Ishida: “Há tanta pressão no fato de que eu tenha que fazer rakugo… e, além disso, vou trabalhar com Yamadera (Kōichi)-san e Hayashibara-san, hein? Pelos céus…”. Resumidamente, foi isso que senti (risos).
Hayashibara: Quanto a mim, me foi oferecido o papel somente depois que Yamadera-san, Ishida-san e Seki (Tomokazu)-kun² deram confirmação. Então, lá no fundo, eu sinto que, se não fossem você e Yamadera-san nesses papéis, provavelmente não teria sido eu também. Eu não tenho certeza do que é, talvez o equilíbrio de nossas vozes, ou nossas mentalidades, ou talvez a sintonia em que estamos, ou nossos vínculos em vidas anteriores (risos), mas nós simplesmente combinamos, de alguma forma. Foi o mesmo quando fiz Cowboy Bebop. (Ishizuka) Unshō-san e Yamadera-san³ foram escolhidos primeiro, e então entrei como a voz entre eles.
— Depois de começar a gravar, vocês poderiam nos dizer sobre o que sentiram e extraíram da atuação um do outro?
Ishida: Foi como se Miyokichi estivesse movendo a história ao meu ritmo, de uma maneira boa. Ou talvez, eu sentia que era bom eles terem se encontrado quando a história já estava se movendo. E assim como eu estava ficando confortável com a atmosfera do estúdio onde estávamos gravando Rakugo, Kikuhiko estava ficando confortável com Miyokichi – isso provavelmente é algo que os homens tendem a fazer, mas senti um pouco como se uma parte de mim estivesse um pouco acima dela, olhando por sobre ela. Estou realmente feliz por ter havido uma certa convergência, na qual a forma como meu personagem se familiarizou com sua parceira refletiu minha própria experiência no estúdio.
Hayashibara: Quanto a mim, ao invés de ser capaz de “extrair” da atuação de Ishida-san, a única coisa que me coube fazer foi tentar entender quem era Miyokichi. Tenho certeza de que Ishida-san e Yamadera-san também lutaram e passaram muito tempo pensando em seus próprios personagens mas, da minha perspectiva, eles já eram Kiku-san e Sukeroku por completo. Como será que eu poderia deslizar para o espaço entre eles como Miyokichi? Investi muito tempo durante as gravações para a primeira metade da série tentando descobrir isso.
— Miyokichi foi um personagem difícil de interpretar?
Hayashibara: Esses dias, vi o último episódio na TV, e mesmo naquele momento me peguei refletindo um pouco, como “Oh céus, será que acertei…?”. Algo realmente incomum para mim (risos). Há uma linha em que Miyokichi diz: “Eu sou simplória, portanto…”, mas o que eu tirei disso foi “Essa garota não é idiota, é?”. Quanto disso é apenas um jogo pra ela, e quanto disso é idiotice real? Era bem difícil lidar com a linha tênue entre as duas coisas. E Kiku-san provavelmente ama essa idiotice da maneira que um homem ama “uma mulher que é um pouco mais quebrada do que ele é”. Não importa o que ele diga, ele vê o modo como ela joga e o que ele encontra do outro lado ele ama ainda mais. Ou algo assim. Ao interpretar Miyokichi, me sentia oscilando entre os dois extremos (fingir ser simplória versus ser de fato simplória). Foi naquela cena do episódio 9 com Sukeroku que ela finalmente escolheu um lado. Quando ela diz “Aconteceu alguma coisa? Eu vou te ouvir…” – de início, me orientaram a interpretar de forma mais apática, como se Miyokichi tivesse perdido tudo. Mas Kumota Haruko-sensei, a mangaká, estava no estúdio quando gravamos esse episódio, e ela disse: “Essa linha sem dúvida representa o ponto em que a personagem começa sua vingança”. Assim, o sentido mudou novamente e eu pensei comigo “Ela realmente não é idiota”. Foi então que finalmente senti que entendi Miyokichi, só um pouquinho. No entanto, acredito honestamente que há pontos em que suas ações são motivadas puramente por ela estar apaixonada, e é precisamente por ela ser uma mulher quase impossível de compreender que Kiku-san também está cativado por ela. Isso mesmo, uma mulher pela qual Kiku-san realmente se apaixonaria – que tipo de mulher seria essa? Ao refletir sobre essa pergunta, eu definitivamente usei partes do meu cérebro que nunca havia usado antes… ei, Kiku-san, o que exatamente você ama na Miyokichi? (risos)
Ishida: (risos) Bem, se eu prosseguir a partir do que Hayashibara-san disse, então Kiku provavelmente nunca pensou que Miyokichi fosse simplória. Ele sabe que ela é alguém que usou uma série de artimanhas para sobreviver, para chegar onde está agora. E porque ele a vê dessa maneira, o que ele sente por ela não é o tipo de amor romântico mediano que o aluno colegial moderno sente por sua colega de classe. Mas quando ela está ao seu lado, ele se vê cedendo à tentação. Ele é um cara piedoso, afinal. Dessa forma, ele se deixa influenciar por ela mas, ao mesmo tempo, ele está calmamente olhando para si mesmo e dizendo: “Este não é um amor romântico”. E ele provavelmente se vê, sendo tão calmo, como um cara esperto e acima das circunstâncias. Mas ele simplesmente não consegue jogar fora esse sentimento de conforto que obtém ao lado dela. Ele é um cara fraco… ou melhor, um cara injusto. No episódio 8, ele se irrita quando volta da turnê regional e vê Sukeroku e Miyokichi próximos, não é? Pessoalmente, eu não acho que ele estava com toda aquela raiva, não mesmo (risos), mas também meio que entendo por que ele estava chateado. Embora ele não se considerasse apaixonado, ele ficou irritado com a ideia de se afastar dela. Então, eu também tenho que refletir sobre a minha performance, assim como Hayashibara-san. Na cena em que Kiku diz: “Eu estou (sendo um homem). Esta é a maior mentira da minha vida” – quando gravamos esse diálogo, entrei em cena tomando essas palavras literalmente. Mas agora que eu penso nisso, não é como se Kikuhiko estivesse preparado para manter o relacionamento – esse tipo de pensamento provavelmente era algo inconsciente para ele. Por isso, tenho certeza de que aquelas palavras que ele disse a Sukeroku foram, em algum nível, uma mentira destinada a ele próprio.
Hayashibara: Há tantas emoções do outro lado do “Eu te amo” que não sabemos mais qual deles está certo e qual deles está errado. Em particular, na parte do meio do anime, senti que estava esperando a orientação dos diretores no que diz respeito ao que estava saindo de mim naturalmente naquele momento. Mas se pensarmos sobre isso, é assim o verdadeiro amor romântico. Não é como se você estivesse lendo uma carta de amor que expressa tudo claramente em um número definido de palavras. A atitude que o seu parceiro toma em qualquer ponto particular também altera as palavras que você usa, e não é como se as coisas fossem desempenhadas da maneira como você planejou. Nesse sentido, mesmo aqueles elementos da minha performance que eu pensei que podem ter sido incorretos, podem ter saído corretos no que se refere ao resultado final – venho tentando pensar desse modo, sem tentar me justificar. Além disso, tudo o que resta é deixar aos espectadores para decidir o que eles sentem a respeito.
— Qual a percepção de vocês sobre Sukeroku?
Ishida: Ele é real até o osso, sem artifícios.
Hayashibara: Sim, concordo com você. E é por isso que ele termina daquele jeito (risos). Miyokichi o invejava, só porque ele e Kiku-san se davam tão bem. Algo também pode ter acontecido na Manchúria, mas ela simplesmente não se interessa por um homem que tenta enganá-la com tanta cara-de-pau mesmo sabendo que ela é a acompanhante de seu mestre (risos). No final, um homem como Kiku-san é mais atraente para ela – alguém que luta para se conter, pensando “não posso tocá-la porque ela é do meu mestre”, mas que gradualmente perde essa briga e a toca. Por isso, se Kiku-san não tivesse se envolvido com ela, não acho que ela teria qualquer interesse por Sukeroku.
— E isso não mudou, mesmo depois de levá-lo à sua cidade natal?
Hayashibara: Porque essa era sua vingança. Mas já que Sukeroku era tão caloroso, acho que estar com ele pode ter trazido alento a ela. Nesse sentido, ela pode ter sentido às vezes que ele estava ajudando-a a se esquecer (da coisa que ela realmente queria). Com Kiku-san, ele era tão frio que ela sentia necessidade de aquecê-lo, mas Sukeroku é quente, incondicionalmente quente. Como a barriga de um golden retriever (risos). Esse tipo de sensação calorosa, confortável.
Ishida: Eu acho que Kikuhiko sempre foi frustrado e invejoso de como Sukeroku encontrou sucesso com seu modo de viver completamente diferente do dele, mas se você me perguntar se ele sentiu algo em particular quando viu Sukeroku e Miyokichi juntos, eu suspeito que ele provavelmente não sentiu nada do tipo. Na verdade, assumindo que ele estava, naquele momento, pensando que não seria uma boa ideia continuar arrastando as coisas com Miyokichi, foi como uma dádiva de deus para ele. Não que ele assumisse isso, mas eu suspeito que ele provavelmente sentiu algo como “Obrigado por criar a oportunidade para eu terminar com ela”.
— Sobre Kikuhiko e Sukeroku, era como se eles tivessem um destino compartilhado através do rakugo, mas que foi destruído por causa de Miyokichi. Como vocês interpretaram esse aspecto da história?
Ishida: Kiku provavelmente nunca teria imaginado isso como resultado dele dispensar Miyokichi, que ela se mudaria para o campo com Sukeroku. E ele jamais teria desejado tal resultado.
Hayashibara: Mas se eu olhar para as coisas não da perspectiva de Miyokichi mas simplesmente como um espectador, eu diria que independente de Miyokichi estar lá ou não, acho que teria sido difícil para Sukeroku continuar fazendo rakugo em Tokyo. Ele provavelmente se distanciaria de Kiku-san, você não acha?
Ishida: Eu suspeito que Kikuhiko provavelmente não pensou em tal possibilidade. Sukeroku estava recebendo muita repercussão negativa por causa do que estava fazendo, das coisas que almejava, e muitos problemas vinham surgindo como resultado. Mas os fãs também o enchiam de elogios por suas performances incríveis. Assim, seria melhor se Sukeroku não causasse nenhum problema; mas se o fizesse, Kikuhiko pretendia continuar apoiando-o. E eu acho que ainda havia um longo caminho a percorrer antes que ele perdesse a paciência.
Hayashibara: Entendo… então Miyo-chan realmente roubou Sukeroku pra ela… Aquela garota realmente não é idiota. A “vingança” de que Kumota-sensei falou foi de fato essa.
¹ – Em inglês, usou-se “voice actor/actress” e “actor/actress” em diferentes ocasiões ao longo do texto. Dei prioridade ao japonês “seiyū”, mais convenientemente associado aos dubladores, apesar destes também serem comumente atores de teatro, TV e cinema no Japão.
² – Dublador do Yotarō.
³ – Dubladores de Jet e Spike, respectivamente.
Um comentário sobre “Shōwa Genroku Rakugo Shinjū: uma entrevista com Akira Ishida (Kikuhiko) e Megumi Hayashibara (Miyokichi), parte 1 de 2”