(Não) Indicamos: Eromanga Sensei – ou, deus não passa de um autor de light novel

Desconstruindo a coluna de indicações do blog com um anime que desconstrói os neurônios de qualquer homem prudente.

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O primeiro semestre de 2017 já se foi. Durante esse intervalo, tivemos grandes animes, como Shōwa Genroku Rakugo Shinjū, Gundam: Iron-Blooded Orphans e Kobayashi-san Chi no Maid Dragon. Também tivemos coisas que poderiam ter sido piores do que de fato foram, como Hand Shakers. E tivemos… Eromanga Sensei. Originalmente uma light novel de Tsukasa Fushimi, publicada periodicamente pela gigante Dengeki Bunko, a adaptação para anime ficou nas mãos do estúdio A-1 Pictures. Pra ser franco, nenhuma dessas credenciais me inspira muita confiança. Portanto, o que eu esperava de Eromanga Sensei era um anime mediano e esquecível. Eu não sabia no que estava me metendo.

A sinopse de Eromanga Sensei é a seguinte: Generi-kun e a sexy loli-sem-bunda Sagiri se tornam irmão e irmã. Em outras palavras, o pai de Generi-kun e a mãe de Sagiri se casam. E morrem num acidente de carro no dia seguinte. Eu não inventei nada disso. É esse o grau de conveniência e cretinagem. Após a tragédia, a traumatizada Sagiri se tranca em seu quarto por um ano, enquanto Generi-kun se converte na figura materna que faz almoço e lava as calcinhas de Sagiri, não necessariamente nessa ordem. De novo, eu não estou inventando isso. Pare de me julgar. Para sustentar a casa, Generi-kun muda seu nome para Reki Kawahara, e expele light novel atrás de light novel em troca de cheques preenchidos com muitos zeros. A razão de seu sucesso como autor está no ilustrador dos livros: o misterioso Eromanga-sensei. Se você já assistiu, deixe-me ver, três animes na vida, deve ter adivinhado a verdadeira identidade do Eromanga-sensei. A partir de agora, Generi-kun deverá tirar Sagiri da reclusão, enquanto eles criam mais atrocidades light novels juntos e indiscriminadamente morrem de tesão pré-adolescente um pelo outro. Ah, têm mais alguns personagens, também. Todos fêmeas. Todas menores de idade. E todas apaixonadas pelo Kirito. Digo, Generi-kun.

 

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Sagiri é menor de idade, ok? OK? Ficou claro?

 

Já escrevi, aqui, sobre a preocupação de Hayao Miyazaki quanto a animes que carecem de contato com a realidade. O diretor acusa os perigos da arte insular. Ou seja, de artistas que restringem sua experiência cotidiana a uma única mídia ou a um único gênero, e se expõem cada vez menos ao contato com outras pessoas. Como a reclusão é um problema público terrível no Japão, imagino que nós ocidentais não tenhamos ideia do péssimo sintoma social que se manifesta em obras como Eromanga Sensei. Não que não hajam NEETs desse lado do mundo. Apenas percebo uma certa omissão nas pessoas quando uma obra tão rasamente escapista quanto Eromanga Sensei fica entre os dez animes mais populares no MyAnimeList em 2017, com um total de 154 mil membros. Isso é mais do que o longamente aguardado Little Witch Academia (140 mil membros) e do que a sequência caça-níquel Boruto (119 mil membros). É basicamente o triplo de Rakugo (48 mil membros), um anime obscenamente subestimado pelo público geral. Esses números apontam uma vista grossa da nossa parte? Ou a típica metalinguagem dos animes subverteu a si mesma, e agora se afastar da realidade é o novo mecanismo para se reaproximar dela?

Justificando minhas críticas a Eromanga Sensei, devo primeiro resumir a obra segundo as conquistas de cada episódio. É o seguinte: em metade deles, nada acontece. Literalmente nada acontece. Personagens se sentam, falam, gritam, falam, gritam mais um pouco, e a câmera dá um jeito de mostrar um decote ou uma calcinha – por minuto. Entra o encerramento e termina o episódio. Você coça a cabeça e se pergunta se a ideia era essa mesmo. Na outra metade dos episódios, personagens decidem que o anime é sobre incesto, mas mudam de ideia e decidem que trata-se de um harém, até que a cena final induza novamente para incesto. Entra o encerramento e termina o episódio.

Sobre os personagens, eles… existem. Sem dúvida eles existem. Eu sei disso porque eles gritam bastante. Nosso protagonista, Generi-kun, é dublado pelo mesmo cara que dubla Kirito, o herói de Sword Art Online. Portanto você sabe que ele passa boa parte dos episódios gritando. Quando nos é apresentado, Generi-kun mostra-se uma pessoa esforçada. Ele cursa o ensino médio e cuida sozinho da casa, e coloca comida na mesa trabalhando como escritor de light novels. A razão disso é a preocupação que sente com Sagiri, sua irmãzinha de 12 anos, uma hikikomori que se isolou completamente de qualquer vida social após o acidente dos pais. Generi-kun deixa bilhetinhos, avisa Sagiri quando chega e sai de casa. Ela é a única família desse guri.

Mas eis que, na grande reviravolta do primeiro episódio, Generi-kun descobre que Sagiri é a ilustradora das light novels que ele vêm escrevendo. Surpreso com essa informação – e com o perigo iminente de Sagiri aparecer nua numa livestream(?) –, Generi-kun quase derruba a porta do quarto de sua irmã. Os dois estão frente a frente, após um ano sem nenhum contato além dos pratos sujos e das calcinhas sujas. E o Generi-kun-figura-materna que conhecíamos até aqui, nesse primeiro episódio de Eromanga Sensei, desaparece. Pois agora ele quer outra coisa…

 

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Agora, eu sei o que você está pensando. Deve ter mais coisas rolando nesse anime, não deve? Não é possível que seja só isso. Não há profissionais de uma indústria por trás disso, sendo pagos e patrocinados, recebendo uma vaga na programação semanal de um canal de TV, não é? Vamos com calma. Vamos bem devagar. Eu quero que isso seja ruim. Eu quero que o leitor sofra como eu sofri.

Sagiri, a hikikomori, é descrita nesse primeiro episódio como alguém que não consegue interagir com outras pessoas, tamanho seu medo e sua ansiedade. Ele é, de fato, uma hikikomori. Recomendo alguma leitura sobre o assunto, incluindo o mangá de Welcome to The NHK, que retrata bem o quanto não é divertida a reclusão prolongada, e o quanto isso trás sofrimento às pessoas. Porém, em Eromanga Sensei, assim que Generi-kun indelicadamente invade o quarto de Sagiri, ela se revela alguém infantil, uma lolizinha tímida. Ou melhor, uma irmãzinha de anime, sem nenhum problema psicológico. E isso se repetirá, episódio atrás de episódio. Sempre que for conveniente para o roteiro, Sagiri voltará a ser alguém com séria insegurança interpessoal, como nos episódios da festa ou da viagem à praia. Já em suas transmissões online com os fãs, a persona que Sagiri usa não se parece com alguém traumatizado, que não saiu do quarto por todo o último ano. Ela é leve, extrovertida e, claro, pervertida. Quanto a este ponto, também parece altamente propício ao roteiro que Sagiri se comporte literalmente como um otaku velho e safado na internet, convencendo outras meninas a mostrar a calcinha pela webcam(!). Enquanto, na vida real, Sagiri morre de vergonha até mesmo de falar sobre seus desenhos. Sagiri, assim como Generi-kun, se mostra a personificação do otaku virtual em alguns momentos, para em outros se tornar o próprio objeto de desejo e fetiche dessa mesma persona otaku. A voz de Tsukasa Fushimi transparece demais na obra, o que não é bom sinal.

 

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É essa a aparência do quarto de uma pessoa reclusa há mais de um ano? Bem limpinho, iluminado e colorido, não? Por sinal, eu não vejo nenhum banheiro aí…!

 

Mas é claro, toda a vacilante construção de Sagiri como uma hikikomori já não ia bem, até ser jogada no ralo no penúltimo episódio. Através de flashbacks, aprendemos que a menina sempre foi reclusa; sempre faltou à escola para passar o dia de pijamas. Um comportamento aceitável para sua mãe. E o curioso é que Generi-kun parece repetir a mesma abordagem frouxa para com Sagiri. Isso prova o que já sabíamos: Generi-kun é um mau cuidador. E tudo bem, ele é só um adolescente. A coisa que realmente ofende é descobrir que a Sagiri pré-tragédia e a Sagiri pós-tragédia são a mesmíssima pessoa. Mimada e teimosa. Só que todo o (possível) peso de sua vida em isolamento perde a relevância, e a psicologia da personagem consegue ficar ainda menos interessante.

Além dos irmãos, temos Elf. Ah, Elf… Ela é a única personagem mais ou menos recorrente na série – já que é bastante normal para Eromanga Sensei esquecer personagens. Ou simplesmente descartá-los, até que retornem no último episódio e peçam Generi-kun em casamento. Ao contrário de Generi-kun e Sagiri, Elf parece ter uma personalidade. Parece. Afinal, ela é introduzida na história como uma autora de light novel de grande sucesso. O bastante para comprar uma mansão, aparentemente. E subornar o governo japonês, já que ela adquire a casa sozinha aos 14 anos de idade. Na confusão habitual de Eromanga Sensei, Elf começa como uma procrastinadora, que vive a fugir do trabalho. Ela joga videogames, toca piano pelada, invade a casa dos vizinhos (Generi-kun e Sagiri, quem mais?). No entanto, quando fala sobre seu passado, Elf diz que aprendeu o valor do trabalho duro com sua mãe. E foi assim que aprendeu várias línguas, e a tocar piano, eventualmente se tornando uma escritora altamente produtiva. Mas ela não gostava de procrastinar?

Sobre sua relação com Generi-kun, a obra deixa bastante claro que Elf o considera um parceiro de trabalho. Alguém com quem pode conversar sobre a profissão de escritor, alguém com quem pode praticar e até competir. Ela flerta com Generi-kun vez ou outra, mas subentende-se que esse seja meramente um aspecto de sua personalidade. Até que, por fim, todos os flertes e brincadeiras são minimizados no episódio 8, quando Elf e Generi-kun conversam como pessoas reais pela primeira vez no anime, e o roteiro posiciona Elf como alguém que apoia o relacionamento amoroso dos irmãos. Ela sai de cena, no sentido romântico. É o melhor momento de Elf, como uma personagem bem realizada e que quebra a possibilidade de harém na obra. Entretanto… É sério, é questão de um episódio, e tudo vai pelos ares. No episódio 9, Elf organiza uma viagem à praia, onde se declara para Generi-kun e o pede em casamento, sob a luz clichê dos vagalumes. O roteiro imediatamente mata a personagem. A única boa personagem; que passará o final da série sendo mais uma caricatura. Pessoas podem ser voláteis e inconstantes, mas Elf simplesmente não faz sentido. Eu já conversei com seres humanos antes. Elf não se parece com eles. E o pior é que suas oscilações deformam o enredo como um todo. Ah, e ela é a única que fica de biquíni no episódio de praia. Me diga, qual o ponto de se fazer um episódio de praia e não enfiar todo o elenco feminino de biquíni em cada cena? Faça alguma coisa direito, Eromanga Sensei. Episódio de praia é um fanservice tão formuláico, mas nem pro básico você teve competência.

 

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Eu quis gostar de você, Elf. Talvez se você estivesse num anime melhor…

 

Falar sobre os outros personagens é impossível. Eu cheguei a escrever um parágrafo e o apaguei, pois não me lembrava do nome de ninguém e os apelidos que os dei não eram engraçados. Saiba apenas do básico: se é personagem feminino, ela irá se apaixonar pelo Kirito e orbitá-lo mesmo quando ele já está num relacionamento estável com a Asuna; se é personagem masculino, ele dispensará dubladores, pois não terá falas. É isso. Próximo assunto.

 

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Esse cara até tem falas, mas isso aí conta?

 

Light novels, na forma como são publicadas e vendidas no Japão, são produtos descartáveis. É o tipo de leitura breve, simplificada – por isso light novel. A impressão é em papel barato, e normalmente a lombada de cada livro não possui qualquer identificação. Em suma, não são itens de colecionador como mangás. Obviamente, há exceções. Existem versões descartáveis de mangás e versões colecionáveis de light novels. Contudo, o padrão é que light novels sejam de fato vápidas. É literatura fast-food. Assim, autores de light novel usam a mídia a seu favor e se tornam absurdamente prolíficos. Reki Kawahara, o gênio por trás de Sword Art Online, já publicou dezenove light novels na série desde 2009 – eu disse dezenove. Em média, isso dá dois livros por ano. No início da serialização de SAO, Kawahara chegou a publicar três por ano. O assustador é pensar que uma light novel é composta por, mais ou menos, 40.000 a 50.000 palavras. Quem escreve sabe que isso é bastante. Não vou discutir a qualidade geral da mídia, pois muitos animes que eu adoro são provenientes de light novels, como Toradora! e Baccano!, por exemplo. Meu foco, aqui, é destrinchar Eromanga Sensei. E como a obra já se provou fraca na construção de personagens, sinto informar que a construção de mundo também não é das melhores.

Como autores de light novels, Generi-kun e Elf, e outros personagens também autores, falarão sobre a mídia e passarão algumas cenas escrevendo seus livros. Na verdade, arcos inteiros de Eromanga Sensei se dedicam a retratar a vida de escritor profissional. E o anime faz um péssimo serviço. Personagens de 14 anos vendem milhões de cópias, Generi-kun escreve um livro inteiro em uma noite (repetidas vezes), outra personagem é desclassificada de uma competição por escrever o dobro do exigido, e assim por diante. Para ser autor de light novel, você deve ser duas coisas: rápido e produtivo. Mas os caras de Eromanga Sensei vão além dos limites. Eles são verdadeiras máquinas, que vomitam livros inteiros em algumas horas como se não fossem nada. Imagino, portanto, que a piada seria justamente essa. Exagerar um aspecto dessa nobre profissão para gerar comédia. Acontece que a piada vai ficando cada vez mais exagerada ao longo de Eromanga Sensei. E o que poderia ser cômico nos primeiros episódios se torna uma sátira não intencional à própria mídia das light novels. O tiro sai pela culatra, exibindo justamente o maior ponto fraco desse tipo de literatura: ser light demais.

 

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Alguém pare este homem!

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Pelos céus, ela também! Alguém pare essas pessoas!

 

Com isso, temos outra larga avenida de caracterização sendo mal utilizada, com personagens deixando de ser comicamente workaholics e se tornando apenas robôs infalíveis. Em quase todos os parâmetros, os personagens de Eromanga Sensei não são relacionáveis porque não possuem um pingo de humanidade. Eles são apenas memes. A causa disso é a total inconsistência na forma como são escritos. São personagens que parecem ter sido concebidos sempre seguindo a regra do menor esforço, me fazendo pensar que o autor escreveu somente um personagem para Eromanga Sensei, e dividiu esta personalidade em três ou quatro pessoas. Sagiri, Generi-kun e Elf são, possivelmente, o próprio Tsukasa Fushimi. Dialogando consigo mesmo e com suas vontades reprimidas – sem nunca sair do lugar.

Narrativamente, eu diria que falta culhões a Eromanga Sensei. Falta coragem. Eromanga Sensei tem o mesmo problema que quase todos os ecchi, que é contar uma história sem investir todo o coração naquilo. Obras desse tipo costumam gastar seus doze episódios num limbo narrativo onde absolutamente nada acontece. O enredo não descamba pra um hentai, mas também não tem a integridade necessária pra ser um romance. Ou quem sabe uma comédia romântica, já que alguma veia satírica sempre existe na abordagem animística sobre relações amorosas e sobre o sexo – seja isso fruto de insegurança ou não. No caso de Eromanga Sensei, penso que o erro fundamental do anime seja nunca se decidir entre um romance ou um harém. Desde que a primeira candidata extra é introduzida, Megumin-Fake-Bitch, a obra fica oscilando entre as outras personagens extras que também se declaram para o protagonista. Enquanto nós sabemos, desde a primeira cena de Eromanga Sensei, que Generi-kun só tem olhos para Sagiri. Em suas escorregadias incursões rumo ao gênero harém, a obra consegue denegrir ainda mais seu protagonista, já que ele parece estar somente iludindo essas candidatas extras. Generi-kun as recusa, mas as mantém sempre por perto, fazendo-as sofrer sadicamente. É triste, mas quando deixa de ser um meme ambulante, Generi-kun se mostra um cara imprestável. Ele e Eromanga Sensei sofrem do mesmo mal: são incompetentes, fazem as coisas pela metade. É quase como se não tivessem alma. No limbo narrativo onde Eromanga Sensei repousa, nenhuma interação entre personagens possui significado. Ninguém come ninguém, mas claramente ninguém ama ninguém de verdade. Tudo é só insegurança adolescente e virginal. Nenhuma dessas pessoas se parecem com pessoas. E a única que parecia, Elf, é repetidamente sabotada pelo roteiro.

 

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Generi-kun e seu harém em Eromanga Sensei

 

A outra obra famosa de Tsukasa Fushimi é Oreimo. No pior dos casos, Eromanga Sensei é a cópia fajuta de Oreimo. Pois, no melhor dos casos, alguma recompensa existiu na história de Oreimo. Olha só, caro leitor. Eu não gosto de Oreimo. Mas eu pelo menos consigo respeitar Oreimo. Pois, no fim do dia, o que você honestamente espera extrair de Oreimo: incesto. E o que Oreimo te entrega em um desfecho épico, depois de um pouco de harém desnecessariamente dramático e algumas reviravoltas moderadamente emocionantes: incesto. A obra não desperdiça (tanto) seu tempo. E você não é obrigado a se justificar com falso moralismo sobre “problematizações”. Ainda mais quando incesto deixa de ser um assunto proibido e se torna um gênero artístico por si só no Japão. Ninguém está de fato chocado.

Quando as situações eróticas de Eromanga Sensei causam desconforto e até nojo, e causam preocupação ao otaku com relação à mídia, não é porque a obra esteja fazendo qualquer coisa diferente de qualquer outro anime de qualquer outro gênero. Afinal, fanservice sexual é algo inerente a animes, e vale dizer que isso não é uma coisa ruim por definição. É apenas uma linguagem. É apenas um trope desse meio. Assim como o repetitivo ambiente escolar, por exemplo. O problema, nesse caso, é que Eromanga Sensei disfarça muito mal seu lado mais podre. Ou não disfarça nem um pouco. Já que, em termos visuais mas também narrativos, o fanservise de Eromanga Sensei geralmente é a única coisa rolando na tela. É o único apelo da obra. Não temos nem mesmo personagens coerentes a amparar essa ânsia pelo fanservice. Considere Sword Art Online outra vez: Kirito arriscava sua vida e lutava contra monstros em um mundo virtual perigosíssimo que na verdade era fruto de uma grande conspiração… enquanto Asuna era estuprada. Percebe como há mais de uma coisa em jogo? Digo, além da virgindade da sua waifu.

 

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[pensando numa legenda pra isso~]

 

É evidente que o modelo de produção insano da indústria dos animes acaba por preparar o terreno a todo tipo de mediocridade. Trata-se de uma indústria, afinal. E a Lei de Sturgeon nos recorda do ceticismo saudável com que deveríamos abordar arte. O escritor Theodore Sturgeon, cansado de ter que defender a ficção científica dos críticos literários em seus primórdios, surge com a seguinte premissa: 90% dos livros de ficção científica são, de fato, descartáveis; contudo, o mesmo é válido a qualquer forma de arte. Desse modo, sinto que desperdiço meu espaço aqui no blog quando destilo meu remorso por um anime tão pedestre quanto Eromanga Sensei. No entanto, ainda que seja pedestre, não consigo me desvencilhar do temor que me causa notar que obras de arte tão miseráveis estejam se tornando tão comuns. Pensando em cultura otaku, uma série como Eromanga Sensei é exatamente o que trás má fama aos animes. É o que impede muita gente de perder o preconceito com desenhos japoneses. Em sentido mais amplo, parafraseio um dos meus músicos preferidos, Tom Waits: “o mundo é um lugar infernal, e a má escrita é o que está destruindo a qualidade do nosso sofrimento. Ela barateia e degrada a experiência humana, quando deveria inspirar e elevar”. Eromanga Sensei e sua incompetência generalizada são, hoje, a regra para animes. Não a exceção. Mas seu sucesso é inquestionável.

 

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Essa é Megumin-Fake-Bitch, e é com diálogos assim que Eromanga Sensei apresenta seus memes personagens.

 

Mas então o que definiria um bom anime? Ou a boa arte? Não pensemos no artista como uma figura idealizada dotado de inspiração boêmia constante, mas num trabalhador braçal cuja produção criativa será constituída de lixo em 90% dos casos – como nos recorda a Lei de Sturgeon. Assim, ainda que fadado ao fracasso diário, o artista deve persistir. Deve errar e errar, enquanto se esforça e se aprimora. Dentro desses requisitos, já escrevi aqui sobre a importância de se treinar diariamente, seja qual for sua área de atuação. Mas, em resumo, deduzo que seja impossível produzir algo de qualidade quando não se é sincero consigo mesmo. Afinal, contar a mesma mentira todos os dias não criará uma nova verdade, apenas te afastará da sua melhor criação em potencial. O que me faz ter dúvidas sobre as intenções artísticas de Tsukasa Fushimi e suas light novels.

Explico minha ideia sobre arte com um novo exemplo, aparentemente inusitado: Highschool of The Dead. O diabo bem sabe que eu adoro Highschool of The Dead. Um exploitation, um anime assumidamente estúpido, cheio de nudismo gratuito e violência exagerada. Mas Highschool of The Dead não mente pra mim. Nunca mentiu. “Veja bem, caro espectador, aqui você verá mulheres nuas usando tacos de golf para lutar contra zumbis”. Obrigado, Highschool of The Dead. Você prometeu e cumpriu com sua palavra. Nossa relação é boa por causa disso. A intenção da obra é divertir com o ridículo, é não se levar a sério. E funciona, pois é sincero.

 

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Isso é o que Highschool of The Dead faz com Eromanga Sensei

 

Eromanga Sensei, por outro lado, é incapaz de ir até o fim com suas propostas. Propõe incesto. Mas volta atrás, com os protagonistas decidindo que não são irmãos, que apenas foram criados juntos. Propõe então uma relação familiar entre eles. Mas volta atrás, com a câmera mostrando Sagiri em ângulos ginecológicos e os protagonistas agora decidindo que são irmãos e que devem ir até às últimas consequências com seus fetiches. Em seguida, propõe um harém. Mas volta atrás, com o protagonista dizendo que não ama ninguém exceto sua irmãzinha loli. Com isso, propõe que não é um harém, mas um romance entre os não-irmãos. Mas volta atrás, com o protagonista deixando a irmã em casa e saindo com outras meninas, e admitindo que gosta “mais dessa e menos daquela”. E assim por diante.

Tudo isso no mesmo episódio. Eu não to de sacanagem.

Cada episódio é um trajeto imprevisível, com desvios e curvas repentinos. Mas que, em última análise, não chegam a lugar nenhum. A estrada de Eromanga Sensei dá direto num abismo, caindo nas trevas profundas onde ardem em chamas todos os outros 49 animes da temporada que serão imediatamente esquecidos pelos seus fãs fervorosos após três meses. Quando o ciclo recomeça. Deus, por favor, Deus, me deixe morrer. Por que você me permite fazer isso comigo mesmo?

Em suma, o que ofende em Eromanga Sensei não é seu fanservice ou suas – nada discretas – sugestões pedófilas e incestuosas. Estes são crimes em muitos países, é claro. Mas todo otaku sabe que, sem essas coisas, animes nem mesmo existiriam. Obras como Eromanga Sensei não pecam, digamos, judicialmente. O crime aqui é outro. O crime aqui é a insinceridade, é a incompetência. É escrever uma obra que finge romper tabus, que incita ir além dos limites narrativos e visuais de uma indústria viciada, quando na prática não é capaz nem mesmo de estabelecer seus próprios limites textuais com clareza. Pois, no fim, Sagiri e Generi-kun são ou não são irmãos? A pergunta não é essa. Sabemos que não são. Isso deveria ter sido superado ainda no primeiro episódio. A pergunta correta seria: o fetiche é esse ou não é? Ou será que Eromanga Sensei se trata de um harém? Aqui, não exijo um Oreimo 2.0, exijo apenas alguma consistência quanto à proposta interna da obra – se é que existe uma. Isso é o que chamamos de “roteiro bem escrito”. E é somente sob essa luz que até mesmo um fetiche esquisito opera com coerência. Querer não é relevante, mas o quê e como querer – incluindo coisas ilegais. Nesse espectro, Eromanga Sensei é só mais um anime lixo de temporada que não sabe o que quer e faz tudo pela metade, em nome de insinuações vazias. E que não tem competência nem mesmo para executar um episódio de praia decente, o que poderia ser sua única redenção. Mas que com certeza receberá uma segunda temporada daqui a seis meses, pois há público de sobra pra isso.

6 comentários sobre “(Não) Indicamos: Eromanga Sensei – ou, deus não passa de um autor de light novel

  1. mateustebaldi disse:

    Melhor análise de Eromanga-sensei que vi por aí em português! É difícil achar alguém que conseguisse tirar as palavras da minha cabeça como vocês fizeram, então acredito que estão de parabéns por expressarem meu desespero com relação a recepção dessa série pelo público em geral. Só me resta uma pergunta: por que as pessoas têm se contentado cada vez mais com obras de menor esforço, medíocres, indecisas e, principalmente apelativamente hipócritas? Será esse o reflexo do que a própria humanidade está se tornando, cascas vazias guiadas apenas pelo prazer e lei de menor esforço?

  2. Cara disse:

    Única análise em português que eu li que trata Eromanga pelo lixo que é. Eu até comecei a escrever sobre o quão ofensiva essa obra é (e vou terminar um dia, só me falta tempo http://aquelecaradosanime.ml/anime_idiota/eromanga_sensei/eromanga_sensei_parte_1).
    O maior problema é que esse tipo de obra é o que as pessoas querem. Não querem ter que pensar em absolutamente nada. Não querem consumir conteúdo útil. Não veem que há milhares de anime melhores que este que elas poderiam estar assistindo. E assim a A1 segue focando em criar uma modinha por temporada…

  3. PIETRO DOS SANTOS MENDES disse:

    Deve ser muito chato ser você, não é todo dia que uma obra realmente te agrada e daí você se encontra correndo atrás de satisfazer sua vontade de ver um bom anime/mangá/light nível mas seus altos padrões o impedem de se divertir.

  4. Matheus Silva disse:

    Eu concordo com tudo que você disse sobre o anime, mas, a partir do momento que tu começa a analizar demais animes, tu sai do objetivo principal que é a diversão, assistir animes se torna cada vez mais agoniante por não ser da forma que julgas que deveria ser. Não que esteja errado o que você disse, mas eu não queria ser você, você provavelmente não se felicita com tantos animes mais, isso é bem triste.

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