O momento de virada em Shouwa Genroku Rakugo Shinjuu

Que tal discutirmos um pouco a respeito de um dos melhores animes dos últimos tempos? Para isso, vamos analisar a guinada final da primeira temporada, que prepara com maestria o terreno para a segunda.

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Aristóteles dizia que uma tragédia deve, invariavelmente, possuir um final triste e inevitável, trazendo a destruição ou a loucura a um ou mais personagens. Através da inevitabilidade dos acontecimentos, a audiência sente compaixão pelos personagens e é levada a refletir sobre a história mesmo depois de finalizada – num sentimento chamado “catarse”.

Com o intuito de acompanhar a segunda temporada de Shouwa Genroku Rakugo Shinjuu, maratonei a primeira. E, além de ficar embasbacado com a qualidade geral da série, pude também, e principalmente, sofrer com a funesta sucessão dos eventos no passado de Kikuhiko. “Shinjuu” (心中), um dos termos mais simbólicos no título da obra, significa literalmente “duplo suicídio”, e isso sinaliza ao espectador que, desde o princípio, a história se trata não de um simples drama histórico japonês, mas necessariamente de uma tragédia.

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Não só o título da série, a abertura também dá suas dicas

 

Contudo, apesar de você já imaginar o que o aguarda nos momentos finais dessa primeira temporada, há um episódio no meio do caminho que torna a eventual tragédia, de fato, uma coisa inevitável. Falo do 8º episódio. Nele, enquanto Kikuhiko está em turnê com o então mestre Yakumo, nos é mostrada parte de uma apresentação de Sukeroku, recheada com todos os seus trejeitos, seu carisma, e sua pouco popular abordagem progressista com relação ao rakugo como movimento artístico. Sukeroku tem o cristalino objetivo de modernizar o rakugo, adaptando-o a um Japão onde as marcas da Segunda Guerra Mundial começam a se abrandar, e a sociedade como um todo passa a se interessar por formas de entretenimento variadas, inclusive as ocidentais.

Nesse contexto, Sukeroku antevê uma sociedade japonesa onde o rakugo perderá espaço, e de nada ajudam o pensamento tradicionalista desse tipo de arte e de seus mestres conservadores. Ao retornar a Tokyo, Kikuhiko tem uma conversa bastante simbólica com Sukeroku, onde discutem o atual status do rakugo e suas distintas abordagens. Parte da simbologia da conversa se dá justamente por sua ocorrência num clube de jazz chamado Tennessee. USA, my friends.

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Sukeroku no seu habitat natural: o palco

 

Entretanto, apesar de saber claramente o que quer com rakugo, Sukeroku ainda vive muito desregradamente e é dependente de Kikuhiko até para as coisas mais básicas e cotidianas – algo que talvez prove que, mesmo que tivesse um desejo forte o bastante de salvar o rakugo, a tendência natural das coisas é que o próprio Sukeroku se sabotasse em algum momento. Como, pensando bem, de fato acontece. Só precisava aparecer um rabo de saia… Miyokichi já estava presente na história, mas ao testemunhá-la deprimida no festival após o sumiço de Kikuhiko, Sukeroku descobre que também se sente profundamente abalado pela viagem do amigo. Ou seja, Miyokichi não é, agora, qualquer rabo de saia (contrariando os padrões de exigência de Sukeroku…). Não há dúvida, ela possui mais classe do que as outras geishas, e até mais do que muitas mulheres comuns. Entretanto, apesar de ser uma mulher diferente, Miyokichi não foge de um traço visto também em Sukeroku: ela depende dos outros ao extremo.

E assim, com um olhar ou dois, conscientes ou não, uma mulher quebrada encontra o abrigo perfeito num homem quebrado, e vice-versa. O que é conveniente, afinal o causador do desamparo de ambos foi o mesmo homem. Kikuhiko, ironicamente, sempre pareceu ser a pessoa com menos autoconfiança entre os três, alguém que viveu emocionalmente quebrado por mais tempo. Porém, na hora em que a vida apertou, soube se virar mesmo com suas inseguranças. Talvez Kikuhiko tivesse dentro de si, ao contrário de Miyokichi e Sukeroku, a dosagem ideal de autocrítica, ou apenas reconhecesse o valor do trabalho duro desde cedo – mesmo que esse trabalho duro tenha origem numa infância de abandono e repressão, onde “ser prendado” fosse uma obrigação para que o guri pudesse literalmente sobreviver, seja na casa das geishas, seja sob a tutela do mestre Yakumo. Pois, mesmo tendo essas características, ou talvez devido a elas, a verdade é que Kikuhiko desde crianças olhava exclusivamente pra dentro. Algo que, no contexto de Shouwa Genroku Rakugo Shinjuu, se provará vital.

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Kikuhiko, como de costume, mantendo Sukeroku na linha

 

Ainda no festival, o que vemos é a formação de um “contrato” entre Miyokichi e Sukeroku, um que os ligará até o fatídico clímax da história, um que cumprirá a sina chamada Shinjuu.

O curioso desse acordo é que ele surge do tipo de decisão que envolve obrigatoriamente as intenções das duas partes. Nem Miyokichi nem Sukeroku poderiam ter tido sozinhos a genial ideia de se apoiar em alguém que não Kikuhiko. Foi espontâneo. Espontaneidade advinda da dor. Era necessária a colisão, o encontro, a empatia inusitada, o jogo de sedução de ambos, uma mágoa para com alguém que parece insondavelmente egoísta aos olhos deles (e Kikuhiko talvez seja mesmo, mas isso é lá um crime?). Para uma inclinação que possivelmente já estivesse ali, vá lá e culpe a sensação de vazio pros que se sentem abandonados, e compactuam entre si devido a frustração de ver alguém não precisando deles do mesmo jeito como eles assumem precisar desse alguém, e como sempre assumiram que essa mesma pessoa precise igualmente deles. Kikuhiko, nem em mil anos, poderia prever tal reviravolta.

Desse modo, a farsa está completa. Como no rakugo apresentado por Kikuhiko alguns episódios antes, em que uma geisha infeliz decide que já sofreu demais na vida – como se alguém tivesse tamanho poder de decisão sobre o mundo – e convence um samurai errante, de poucas decisões e muitos sonhos na cabeça, a se engajar no seu desespero por acolhimento em forma de suicídio. De novo, não é como se isolados Miyokichi e Sukeroku alcançariam tal epifania. Foi preciso uma troca de olhares confessionais. Uma interação forte o bastante para convencê-los a abandonar seus frágeis futuros devido à falta de convicção e de tato com a realidade. Afinal, se quando entregues a seus próprios destinos pessoas como Miyokichi e Sukeroku se perdem e preferem orbitar Kikuhiko, é apenas natural que uma camaradagem nasça das cinzas quando esse mesmo Kikuhiko decide seguir sozinho com sua vida e oferecer a mesma liberdade aos outros.

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Triste mesmo é ver que Kikuhiko sempre se importou com os amigos

 

Quanto ao futuro do rakugo, temos o icônico diálogo entre Kikuhiko e Sukeroku, no qual suas personalidades praticamente opostas se complementam. Kikuhiko preserva seus traços prendados da infância, por assim dizer, e confia plenamente no viés conservador de seus mestres, desejando inspirar novas gerações de rakugo através da preservação das tradições; enquanto Sukeroku almeja uma quebra no status quo, argumentando que a própria sobrevivência do rakugo nas próximas décadas exigirá uma nova abordagem, mais condizente com a abertura cultural vivida pelo Japão no século XX. É interessante que a conversa tenha atingido a indagação “o que é rakugo?”. Pois seria rakugo um conjunto de tradições a moldar uma forma de arte, ou uma forma de arte que existe em si mesma independente das tradições que ela respeita? Arte e entretenimento, nesse caso, caminham juntos ou separados? Onde rakugo se encaixa no Japão moderno, e mesmo no mundo moderno?

Indo além, a discussão posiciona ideologicamente os personagens de forma definitiva, apesar do clima amistoso e da sensação de que eles saudavelmente concordam em discordar. Ao verbalizarem suas vertentes quanto à forma de arte que amam, inclusive chegando a abertamente falarem sobre esse amor, Kikuhiko e Sukeroku percebem que a relação entre eles atinge um ponto sem retorno. O approach de cada um quanto ao rakugo inevitavelmente os separará; e por quê não fazê-lo logo, com todo o cavalheirismo a que se tem direito? Afinal, com a recente notícia de que ambos se tornarão shin’uchi (mestres), é chegada a hora da entrega, de trilhar seus rumos individuais com peito aberto. Mesmo porque há muito foi estabelecido que o nome do mestre, aqui personificado pelo 7º Yakumo, é repassado a somente um aprendiz. Há tanta sofisticação nessa cena que é quase como se ela ecoasse os sentimentos de personagens como Charles Xavier e Magneto, de X-Men. Homens de origem semelhante, com um rico passado juntos e uma profunda amizade com sugestivos tons de romance, porém com filosofias e percepções de mundo divergentes. Caminhos que se separam, e uma rivalidade que cresce com o tempo – visto que ela sempre esteve presente, mesmo nos momentos mais fraternos.

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Um prenúncio pra desgraça?

 

Do lado de fora do bar, prestes a se despedirem, Sukeroku insiste em entregar a Kikuhiko o amuleto que sempre o acompanhou: o leque de seu antigo mestre, o primeiro Sukeroku. Com alguma resistência, Kikuhiko aceita o presente. E é divertido notar que Kikuhiko possui um amuleto de semelhante importância: sua bengala, que também estava presente na cena. Ambos amuletos que, perceba, os sustentaram pela vida. O que me faz pensar se Sukeroku estava mesmo preparado para se desfazer do objeto. Uma vez que, mais adiante, descobrimos que abrir mão do amuleto teve quase o mesmo peso simbólico de abrir mão da vida. Já que, pra todos os efeitos, o declínio de Sukeroku parece ter início justamente nessa noite. Ela é, sem dúvidas, uma noite de rupturas. Seja entre Miyokichi e Kikuhiko, seja entre Kikuhiko e Sukeroku, seja entre o passado desses personagens e seus futuros. Tudo acompanhado por um jazz classudo ao fundo.

Talvez o destino, o desenrolar da vida tenham sido cruéis com Miyokichi e Sukeroku, mas a verdade é que lhes faltava comprometimento desde sempre. Por mais que tivessem clareza nos seus objetivos, faltou-lhes trabalhar o bastante para pavimentar seus caminhos, seus futuros. Se Kikuhiko não possuía talento para rakugo, pelo menos sobrava dedicação. Sukeroku, por outro lado, talvez fosse talentoso demais para o próprio bem. E Miyokichi, me parece, bonita demais para o próprio bem. Assim, procrastinaram e convalesceram até não encontrarem mais um retorno na estrada…

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Nunca a expressão “tragédia grega” fez tanto sentido…

 

Conceitualmente, a primeira temporada de Shouwa Genroku Rakugo Shinjuu teve culhões o bastante para passar 90% de seu tempo dedicando-se a um flashback. E o melhor, introduzido como se fosse uma (longa) performance de rakugo. Mérito do Studio Deen, famoso por suas maneiras não convencionais de se produzir animes: como séries com menor número de episódios (KonoSuba: 10eps/temporada), séries com inúmeras temporadas apesar do sucesso modesto (Hetalia: atualmente na 6ª!), séries com cronologias internas bizarras (Higurashi: típica adaptação de visual novel que reseta a cada rota; ou o próprio Rakugo e seu flashback sem fim). Resumindo, Shouwa Genroku Rakugo Shinjuu beneficia-se por estar na mão de um estúdio que faz o que dá na telha, e que ainda por cima elevou a qualidade de suas produções nos últimos anos (quem não chora sangue com Fate/Stay Night, de 2006?).

Além de uma bela trama, retratada num período muito interessante da história japonesa, Shouwa Genroku Rakugo Shinjuu ainda possui uma excelente direção de arte e uma trilha sonora e dublagem soberbas. E olha que só assisti à primeira temporada! Falando nisso, podem contar com um ensaio sobre a segunda temporada aqui no blog, em breve. E até lá, curta, compartilhe e comente o que achou deste post. Até a próxima!

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