A tão aguardada segunda temporada de Euphonium não teve a mesma consistência da primeira… Porém, a obra como um todo ainda merece ser reconhecida, estudada, e (por quê não?) idolatrada mais uma vezinha aqui no blog.
Como periodicamente acontece com animes da Kyoto Animation, seu último trabalho foi recebido com aclamação por público e crítica. O anime em questão é Hibike! Euphonium, e inúmeros fatores técnicos o deixam nessa posição. Trilha sonora, animação, roteiro, tudo impecável – porém, uma pessoa já habituada ao padrão de excelência da KyoAni diria que isso é somente o esperado do estúdio. Nada fora da raia de expectativas. Sendo assim, Hibike! Euphonium poderia adentrar no espectro dos melhores animes dos últimos anos, e ser considerado um novo clássico da KyoAni, simplesmente por definição? Por tabela? Por ter o pedigree de um estúdio competente e bem-sucedido? Ou será que existe algo realmente pungente na narrativa da obra? Uma história mais sofisticada a ser contada?
Desde o primeiro contato da protagonista Kumiko com a banda de sua nova escola, numa das primeiras cenas, do primeiro episódio, somos apresentados ao conflito mais imediato da obra: Kumiko, musicista desde criança, está diante de uma banda desafinada e decadente. “Eles são horríveis”, ela suspira. Aparentemente, ela é o único calouro do Colégio Kitauji que percebe o quão desastrosa é a performance dos músicos. A banda precisa de novos membros, mas Kumiko não está convencida de que há qualquer potencial ali. Sem contar que ela tem outros objetivos, e deseja entrar em outro clube, apesar de não sentir interesse por nenhum.
Por ironia do destino, as duas primeiras amigas que Kumiko conhece entram na banda. E ela acaba fazendo o mesmo, seja por se sentir pressionada, seja por pura indecisão. Fato que a leva a continuar sendo musicista mesmo contrariada. Apesar da falta de paixão que Kumiko demonstra, a história desse ponto em diante se desenvolve da perspectiva de uma banda escolar desmotivada se reerguendo aos poucos graças ao frescor trazido por muitos calouros e por um professor que almeja grandes objetivos. Taki-sensei, assim que aparece diante de seus novos pupilos, os oferece a chance de tocar música competitivamente. Ele democraticamente pergunta aos alunos se gostariam de apenas se divertir, ou treinar sem descanso rumo aos concursos escolares nacionais. O resultado da votação, pra surpresa de Kumiko, é o caminho competitivo.

Taki-sensei: treinos e mais treinos
Mesmo sendo classificado com os gêneros “vida escolar” e “slice of life”, a verdade é que Hibike! Euphonium é, com alguma licença poética, um anime de esporte. Do instante em que Taki-sensei sutilmente induz sua banda através da votação a querer competir contra outras escolas, o roteiro segue perfeitamente uma fórmula clássica. Longas sequências de treinamento, compostas por montagens musicais, introdução de algumas equipes rivais, pequenas tretas internas, a construção de um propósito coletivo único mesmo entre pessoas individualmente muito diferentes, alguns tropeços, uma tensão e um desgaste físico crescentes ao longo de uma temporada. Todos os clichês do gênero. Mas quem não os ama? Um anime de esporte, quando bem executado, é o melhor tipo de anime que existe. Não há discussão nesse ponto. E Euphonium é formulaico e preciso, inclusive no tom emotivo, como uma boa banda…
Contudo, essa é a camada mais superficial da obra. O progresso de uma equipe, se aprimorando conforme atinge seus objetivos competitivos, é o texto principal do anime. Porém, esse texto também possui um significado metafórico pra sua personagem principal. Kumiko, portanto, é quem igualmente progride conforme atinge objetivos, e vai com o tempo entrando em melhores termos consigo mesma. Esse é o subtexto de Hibike! Euphonium. Nesse nível mais sutil, a obra traça a curva dramática de Kumiko, utilizando como recurso exterior a própria banda. Inicialmente desmotivada e desafinada, Kumiko aos poucos reencontra sua pulsão de vida. E o mundo se expande aos seus olhos, revelando vastas possibilidades emocionais nunca antes consideradas por ela.

Reina, Kumika, e um episódio memorável
Como depreendemos gradativamente na segunda temporada de Euphonium, Kumiko se fechou pra música – e metaforicamente pra seus próprios sentimentos – devido ao estranhamento que surgiu entre ela e sua irmã, Mamiko, quando esta abandonou a carreira musical para se focar no vestibular. Esse acontecimento criou um enorme abismo emocional em Kumiko, que pareceu perder, de uma vez só, seu maior modelo e seu maior fio condutor. Mamiko representava uma figura infalível, alguém em quem se inspirar; e a música, quase intrínseca à existência de Mamiko como ídolo aos olhos de Kumiko, se esvaneceu. Um mestre que se desvia de seu caminho ideal, tendo sua humanidade revelada. Uma máscara que cai. A vida perdendo a cor, a fonte de inspiração secando do dia pra noite. Crescer, na percepção de Kumiko, significa desilusão. Mas de fato significa, não é? Porém, o peso dessa realização foi maior pra alguém que sempre se sentiu blindado pela presença divina de alguém em quem se espelhar. Pobre Kumiko. E pobre Mamiko, também. Como irmã mais velha, teve que conhecer primeiro a frieza do mundo e das coisas adultas. E então, a relação das irmãs nunca mais seria a mesma.
Com esse background em mente, se tornam relacionáveis as reações que Kumiko apresenta no início da história. Essa guria, que escolheu sua escola baseando-se em qual teria o “uniforme mais fofo”, que descreve seu primeiro dia de colegial como “meh”, e que encarou com confusão a extremamente emotiva reação de Reina ao perder a competição no ano anterior, será eventualmente a guria a correr sozinha pela rua chorando e gritando que deseja ficar mais forte, que treinará até passar mal de desidratação, e que se tornará a cola a juntar os pedaços de seus colegas de banda conforme desmoronam, um a um, na segunda temporada.

Run, Kumiko, Run!
Hibike! Euphonium é sim a história de uma banda falida reaprendendo a andar; porém, é principalmente a história de uma pessoa que passou anos vivendo confortavelmente entorpecida, mas que graças à paixão que seus colegas e amigos nutrem pela música, e graças à música em si, consegue achar dentro de si o desejo de viver. E que lentamente vai rompendo seu casulo emocional, passando a perceber, pela primeira vez, que há um mundo ao seu redor, com pessoas que também possuem traumas e desejos próprios. Depois de se reencontrar, a maior lição que Kumiko aprende é sobre empatia. Tanto que em inúmeras cenas na segunda temporada isso é ilustrado de forma menos sutil do que o costume na obra. “Então é assim que Asuka-senpai se sente? Como será que é a vida vista através dos sentimentos dela?”. Há momentos e mais momentos em que temos Kumiko sentindo genuína curiosidade pelas emoções alheias – pela própria existência delas, às vezes – fazendo com que a personagem represente o motor sentimental da banda em muitas ocasiões. Todo gesto que ela não compreende, ela pergunta sobre. Todo olhar reticente e toda fala sugestiva vindos de alguém, a faz querer se aproximar, se envolver, vestir a pele de outrem, explorar seus dramas e medos e captar uma fagulha do significado pessoal que cada um deles possui para seus donos. Há quem interprete que Kumiko é fofoqueira e intrometida. Mas do ponto de vista dela própria, não há autoconsciência disso, pois o que ela sente é apenas curiosidade. Puramente. Ela se interessa por tudo ao seu redor, como um paciente recém-saído de um coma redescobrindo as cores do mundo real novamente. Como uma criança. Kumiko, agora, tem uma sede insaciável pela vida. E se resolvendo os problemas dos outros for benéfico pra banda, melhor ainda. Todos saem ganhando, e mais rachaduras vão surgindo no (já enfraquecido) casulo emocional de Kumiko.
Analisando a obra pelo viés da crescente empatia da nossa protagonista, um sutil padrão começa a tomar forma: os traumas alheios que Kumiko desvenda são peças do quebra-cabeça de seus próprios traumas. Essa delicadeza no roteiro eleva ainda mais o status de obra-prima que, a meu ver, Hibike! Euphonium já possui. Como exemplo dessa sutileza, num dos arcos finais do anime, Asuka quase é obrigada a deixar a banda por pressão de sua mãe. Ela afirma que os ensaios desviam o foco de Asuka dos estudos para o vestibular, sem contar com o oculto receio de que sua filha siga os passos do pai e se torne eufonista profissional. Kumiko acompanha o drama do início ao fim, se aproximando bastante da fechada e insondável Asuka. Sem perceber, um dos fatores que mais ouriçou Kumiko nessa situação foi justamente a semelhança com a situação que Mamiko viveu quando mais jovem. Alguém que não sinta o mínimo de empatia pelas pessoas jamais teria a sensibilidade necessária pra lidar com tudo isso.

Asuka-senpai: trabalhada inteiramente na segunda temporada, e um dos destaques da obra
Em outra ocasião, Kumiko testemunhou o conflito entre Nozomi e Mizore. Tudo começou no ano anterior, quando Nozomi decidiu deixar a banda ao perceber que seus veteranos não pretendiam se dedicar o bastante à música. Ao fazê-lo, Nozomi não disse nada à Mizore, que se sentiu traída, permanecendo na banda por conveniência e por uma ponta de esperança de que um dia pudesse retomar a antiga relação com a amiga. Passado um ano, e agora com a banda em seu auge, Nozomi tenta retornar aos ensaios, mas sofre uma acirrada oposição por parte de todos, principalmente de Asuka, vice-presidente do clube. O que se revela, posteriormente, é que Asuka estava tentando proteger Mizore da dor de encarar Nozomi, uma pessoa que a abandonou no passado. Um grande mal-entendido que acaba por ser facilmente resolvido com algo que não havia antes acontecido: uma mera conversa entre as duas amigas. Kumiko, novamente por instinto, orbitou entre Nozomi e Mizore, e acompanhou de perto todo o desenrolar dos eventos, sem perceber que não estava fazendo nada além de revisitar sua própria história. No caso, Kumiko associava inconscientemente aquela situação aos desentendimentos que teve com sua irmã no passado. Uma pessoa desistindo da paixão pela música por fatores externos (Mamiko/Nozomi), enquanto outra pessoa, que a admira, se sente traída e deixada para trás, vivendo no piloto automático desde então (Kumiko/Mizore). Mais brilhantemente ainda, esse arco da obra serve também como um foreshadowing, visto que Kumiko só irá conversar abertamente com Mamiko e acertar as contas com ela no futuro, quase no final do anime. Roteiro magnificamente bem escrito.
Como um último exemplo, pode-se citar o luto vivido por Taki-sensei, drama cujas pistas Kumiko vai coletando aos poucos, até enfim enxergar o retrato (literalmente) da situação completa. No caso do professor, Kumiko entra em contato com uma pessoa quebrada devido à perda de seu maior sonho. Mais uma vez, a curiosidade e o fascínio despertados em Kumiko provêm de suas próprias experiências. Um ano antes, quando Reina chorou compulsivamente ao não vencer a competição de bandas, Kumiko se viu diante de uma dor e um desespero além de sua compreensão. Ela não sabia, até aquele momento, o quanto machuca se dedicar de corpo e alma a algo e falhar. Ou pelo menos, há muito ela se fechara a essa possibilidade. Ao enxergar através do luto de seu professor, que presenciou a morte da esposa cinco anos antes, Kumiko é imediatamente confrontada com a antiga cena do choro de Reina, tão inconsolável quanto Taki-sensei. Ambos perderam tudo que tinham, tudo a que haviam se doado por inteiros. Contudo, na sua infância, foi exatamente o que Kumiko vivenciou, na ocasião em que sua irmã largou a música. O conformismo e o medo de perder algo que se ama finalmente deixam o espírito de Kumiko. E ela agora entende e se sente pronta pra investir em um sonho, ao invés de apenas viver casualmente como vinha fazendo. A autenticidade foi o que a fez observar a si mesma dentro de histórias alheias. E preferir correr riscos de agora em diante.

Hibike! Euphonium: feito especialmente pra você que tem fetiche por pernas (e panturrilhas, e pés…)
Hibike! Euphonium pode passar a impressão inicial de que é um anime somente sobre música e vida cotidiana. No todo, não deixa de ser – e aqui é válido citar o quanto todas as apresentações da banda são de uma beleza ímpar. Entretanto, com o passar dos episódios fica claro que, além desses fatores, sua maior força está nos seus personagens, tão verossímeis que é quase como se você pudesse tocá-los. Eles sentem, vivem, choram como pessoas de verdade (e mais um mérito de ordem técnica é o fato de que se expressam como pessoas de verdade, já que a dublagem é esplêndida). O roteiro é um estudo de suas vidas por completo. Principalmente a de Kumiko. Acompanhar seu arco dramático e observar as sutilezas com que uma história bem contada realçam cada nuance de sua personalidade, é algo pra se guardar com afeição na memória. E assim, como numa dança da lua crescente, que comece a próxima peça!
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