Pois é, resolvi parar pra ler o mangá completo de Soul Eater no final do ano passado. Levou um tempinho, mas terminei. Confiram minhas impressões!

Capa do volume 1 japonês
Você com certeza já assistiu Soul Eater, não é? Tenho quase certeza que o anime é bem mais popular entre os brasileiros do que o mangá. Esse foi até um dos motivos que me levou a comprar a obra quando a JBC anunciou a publicação por aqui: do pouco que havia assistido do anime, me parecia um shounen interessante. Fora que insistir na adaptação animada me levaria ao final relativamente criticado internet a fora. Bom, com os 25 volumes em mãos desde 2014, parti para a leitura apenas em 2016, porque eu sou uma pessoa que organiza bem seu tempo.
Soul Eater é uma obra, digamos, estilosa: o character design e a personalidade dos personagens voltados sempre para o conceito de “cool”, que é recorrente ao longo da obra. É difícil não ser conquistado pelo fator massavéio de personagens como Death the Kid, Black Star e o próprio Soul. Apesar disso, a grande protagonista, Maka Albarn, foge desse estilo, ajudando a equilibrar um pouco as coisas. Essa dualidade de personalidades entre Maka e seu parceiro Soul, aliás, é um dos conflitos com o qual o autor, Atsushi Ohkubo, lida melhor ao longo da obra.
Falando dele, é claramente brusca a mudança de tom durante o andamento da obra. Os primeiros volumes trazem uma história bem mais focada na comédia nonsense, no exagero, no absurdo, o que se denota especificamente na arte: o traço “escrachado”, o ecchi fortemente presente e uma quadrinização mais livre, de experimentação, como o próprio autor comenta em um dos seus free talks. Depois que o primeiro arco vai tomando seu caminho, me parece que alguma coisa(o editor, talvez?) estalou na cabeça de Ohkubo e ele resolveu levar a história a sério, seguindo a receita de um battle shounen tradicional.
Deixo bem claro que quando falo do traço “escrachado”, não estou me referindo à qualidade técnica de Ohkubo como desenhista, é uma constatação de estilo. Entretanto, devo ser sincero aqui: nos primeiros volumes, sua arte é sofrível, mas o aspecto de exagero ajuda a amenizar a situação. Felizmente, Atsushi evolui absurdamente como desenhista ao longo da publicação. Apesar de alguns deslizes em proporções vez ou outra, o traço limpo e mais realista caiu muito bem para essa virada de tom.

Repare não só na evolução do traço, como na recomposição visual dos personagens
Voltando a questão de roteiro, ao meu ver, essa condução de Soul Eater deixou de lado um potencial cômico que a série demonstrava em seu início. Se por um lado, nessa “nova fase” do mangá, as piadas, já raras, tinham seu valor amplificado justamente pela sua raridade(os capítulos que envolvem o personagem Excalibur, por exemplo, são sensacionais), por outro, a história parecia mais “seca”, com um pouco menos de vida. Os novos personagens que se juntavam ao elenco já não tinham o mesmo carisma que os protagonistas e demais personagens mais antigos. Um bom exemplo dessa mudança é o Shinigami, um personagem que é fundamentalmente cômico durante toda a trama e acaba deixado de lado durante a maior parte dela, com alguns diálogos engraçadinhos aqui e ali, mas com as poucas participações importantes, que exigem do mesmo uma seriedade completamente antinatural.
Sobre os protagonistas
Analisando como um battle shounen, é um mangá bem eficiente. As lutas são bem climatizadas e executadas, os personagens evoluem em um ritmo aceitável e, por mais que o universo amplo e livre do mangá dê abertura para isso, dificilmente vemos deus ex machina. Mais do que as boas lutas, Ohkubo utiliza bem os embates no desenvolvimento dos seus personagens. Um bom exemplo é Black Star: o personagem rouba a cena durante boa parte dos arcos, especialmente quando o autor assume de vez o lado fantástico e deixa o personagem ser o que prometia desde o início. Apesar da evolução um pouco rápida, é muito satisfatório observar sua trajetória a longo da trama, além de acompanhar a tímida evolução de sua parceira Tsubaki, a personagem mais simpática da obra e um excelente contraponto para ele. Se há um personagem que merecia uma história própria ali, era o ninja/samurai de cabelo azul.

O pior é que ele está certo
Maka e Kid não ficam para trás: a primeira, junto com Soul, que funciona quase como um elemento narrativo adjunto a ela (afinal, é ele que dá nome ao mangá), proporciona, ao mesmo tempo, bons diálogos, discussões, conflitos e fraquezas emocionais típicas da idade, além de boas lutas. Como mencionei anteriormente, as diferenças de personalidade entre os parceiros ajuda o autor a desenvolver uma relação muito interessante de se ler. É com a dupla Soul/Maka que o autor mais utiliza simbologias com a música durante. Não só simbologia, como referências: Soul Eater é REPLETO de referências à cultura pop, especialmente a musical. É bem divertido entendê-las quando se lê com bagagem.
Kid só ganha sua importância do meio para o final do mangá, embora conflitos e ações dos mais importantes da história passem por ele. É um personagem que te conquista de primeira pelo estilo, mas te irrita quando o autor força sua característica definidora, o transtorno obsessivo compulsivo: é um traço tão forte, tão repetido, que acaba ofuscando sua real personalidade, que é bem mais interessante. Certamente, é o personagem que mais cresce durante os volumes. É uma pena que a sua relação com as irmãs Thompson não tenha sido tão explorada na obra, seria interessante de se ler. Aliás, Liz e ótima Patti são personagens que mereciam um pouco mais do que o papel de suporte em 99% do tempo.
Faltou espaço…
Os vilões, para mim, são um ponto negativo. Apesar de não me convencer tanto assim como vilões, Medusa, Crona e seu grupo têm a melhor construção de antagonismo ali. O restante dos vilões é tão vazio de motivações, tão raso, que fica aquela impressão chata que eles são apenas obstáculos temporários pros protagonistas. Nenhum deles representou uma ameaça tão grande como a bruxa-cobra. Fico com a impressão que o autor não teve espaço, não por falta de tempo, mas porque a própria história já se atropelava antes que ele pudesse desenvolver alguns personagens. Caras como Eibon, Noah, Justin, Gopher, Giricco e, saindo dos vilões, Akane, Clay e até mesmo os death scythes figurantes (isso me revoltou, admito), ou são vazios, ou servem para quase nada.
Esse problema não está presente apenas nos personagens. Há várias discussões ideológicas que o autor deixa de lado ou apenas toca superficialmente para que a história siga logo. O grande problema é que esse tipo de detalhe é uma das coisas que define um bom battle shounen, é o que sai daquela mesmice com que já estamos acostumados. Ohkubo precisou de um spin-off, Soul Eater NOT!, para explicar conceitos e apresentar elementos que ele não teve como durante a história principal. Mas, sem dúvidas, o pior efeito disso é a quantidade ENORME de diálogos expositivos durante o mangá. São muitas explicações – e grandes – sem nenhuma justificativa narrativa plausível. É irritante.

Só te elogiaram, ninguém pediu especificações técnicas
Conclusão
Como um mangá de ação, Soul Eater não decepciona. O universo fantástico permite que o estereótipo batido de colegiais salvando o mundo seja contado de uma forma mais interessante, com todo o cuidado no desenvolvimento de cada um dos protagonistas. As referências, a criatividade do autor e o bom trabalho com dualidades são outros fatores que contam pontos à obra.
Infelizmente, como o próprio Atsushi Ohkubo admite em um monólogo dentro de uma das divertidas historinhas de fim de volume, Atsushi’s Bar, especificamente a do volume 20, ele não queria um mangá muito filosófico, pensando nos mínimos detalhes, mas sim, algo que fosse “na empolgação”. Uma pena, já que carisma, personalidade, não faltam para o mangá. Só que nessa empolgação, muita coisa introduzida de última hora e até alguns backgrounds tiveram que ser cortados, corridos ou ignorados. A mitologia do universo é jogada para baixo do tapete, por exemplo.
Portanto, não acho que o carisma seja suficiente para fazer de Soul Eater uma grande obra. É um battle shounen divertido, tem identidade, cumpre seu papel de forma eficiente, mas, sem explorar todo seu potencial, não conseguiu se tornar algo memorável.